sexta-feira, 14 de outubro de 2011

MONTE FUJI - Japão

Amanhecer no Monte Fuji é paraíso para os olhos - e purgatório para as pernas

LETÍCIA GONZÁLEZ
Colaboração para o UOL Viagem
 
'Apenas um tonto nunca escalou o Monte Fuji - ou o fez duas vezes.' O dito japonês explica o quão básica é a subida na experiência local, mesmo que, na prática, ela não tenha nada de simples. Subindo a montanha mais alta do Japão você vai suar, sentir falta de ar e implorar por um par de pernas novas.

Mas vai também ver uma das paisagens mais impressionantes do arquipélago e, de quebra, provar o gostinho de chegar ao topo do país, com toda a carga mística que isso traz. Que os digam as 430 mil pessoas que realizaram a façanha no verão passado, um recorde de público. Começando à noite, como a maioria o faz, ainda leva de brinde um amanhecer incrível, responsável por gritos e lágrimas dos esbaforidos que chegam lá. É um momento compensador.

A subida se faz a pé, sem necessidade de uma experiência prévia em montanhismo. Os equipamentos mais complexos serão uma lanterna e um bom par de botas, além de, é claro, muita disposição. São 3.776 metros de vulcão, que já deixaram até o futuro imperador Naruhito pela metade do caminho.

Letícia González/UOL
Vendidos a cerca de Y 1.500, os cajados são um elemento essencial da escalada

Das várias formas de se chegar ao cume, a mais tradicional - e corajosa - é a que começa perto da base, a partir do templo Fujisan Hongu Sengentaisha. O guardião espiritual da montanha tem um dos toris - aqueles portais em madeira vermelha - mais altos do país e, não bastasse isso, detém a propriedade particular do pico do vulcão. Você entendeu bem. Em 2004, fazendo valer uma lei que prevê a devolução de terras estatais antes possuídas por templos, o Fuji Segen voltou a ser dono do último pedaço do gigante.

Isso não muda o fato de o Fuji ter acesso irrestrito e, por enquanto, gratuito. A ideia de cobrar uma taxa aos visitantes é discutida pelas duas províncias que o englobam, Yamanashi e Shizuoka, mas até agora não há consenso sobre quem arrecadaria o ingresso nem o seu preço. Quantos às personae non gratae, elas já não existem desde o século 19, quando a reforma Meiji retirou a proibição para que as mulheres subissem esta e outras montanhas sagradas do Japão.

Mas a verdade é que, mesmo de graça, quase ninguém aproveita o privilégio de percorrer do início ao fim as famosas trilhas de lava endurecida. É compreensível: ir ao Fuji Sengen e ficar em dia com as divindades da montanha transforma o passeio em uma caminhada de, no mínimo, dez horas.

É por isso que a maioria dos aventureiros aceita a ajuda de ônibus e sobe neles até onde são permitidos, a cerca de dois mil metros do nível do mar. Há quatro rotas possíveis a partir do fim da linha rodoviário, localizadas na face leste da montanha. A mais popular é a Kawaguchiko, voltada para o nordeste. No verão, os ônibus saem lotados do sopé para o início dela, a 2.305 de altitude.

Ali fica o ponto de encontro da montanha, onde alpinistas conferem os últimos detalhes e turistas compram suvenires. As lojas misturam produtos para ambos os públicos: cajados e lanternas são vendidos ao lado de bolos em formato de vulcão, Fujis em pelúcia e cartões postais. Quem ficou com vontade de ir mais alto, mas não preparou o corpo, pode optar pelos passeios a cavalo, que partem dali e percorrem a primeira porção da trilha.

Dividido pelos antigos peregrinos, o Fuji tem dez pontos de parada, sendo 1 a base e 10 a volta da cratera. É neles que se encontram banheiros, auxílio médico e refeições quentes. No quinto, terminam todas as rotas de ônibus e começam as trilhas Fujinomiya-guchi, Subashiri-guchi, Gotemba-guchi e Kawaguchiko-guchi, a nossa escolhida. Com as pausas incluídas, o tempo médio para traçar essa última é de seis horas.

A temporada de escalada é curta, vai de 1o de julho a 31 de agosto, e nesse período você pode ter certeza de encontrar muitas pessoas fazendo a mesma coisa. Tantas que, em dias mais cheios, alguns trechos ficam literalmente congestionados. A semana mais concorrida é a do feriado Obon de meados de agosto, quando o país inteiro ferve com o turismo.

O percurso começa assim, sem porteira nem largada e em quarenta minutos já se chega ao primeiro entreposto. É neste trechinho inicial que se cruzam os caminhos de início e fim da pequena odisséia, e o clima que se vê é de camaradagem total. "Gambatte!" diz quem desce para encorajar os que iniciam. A frase significa algo como "Força!" e é usada sempre para estimular quem enfrenta desafios.

No sexto nível, o Centro de Orientação do Monte Fuji entrega mapas com a localização das cabanas de repouso e o tempo médio para concluir cada etapa. O conselho mais importante desse papel verde ficará para o final. É na volta, exausto e dolorido, que você tem de prestar atenção à trilha, pois virar à direita na altura da cabana Edoya significa terminar o caminho em outra província. Ao invés de seguir em Yamanashi, por onde veio, estará na base de Shizuoka. Haverá uma placa explicando a bifurcação, mas você só poderá lê-la se dominar a escrita japonesa. Cuide da folha e siga em frente.

O chão da montanha é formado de lava basáltica expelida na última erupção, e as formas mudam ao longo do caminho. Se no início a sensação é de andar sobre terra batida, a partir do sexto nível já se enfrentam muitas pedras soltas. Mais adiante, a altura das rochas vai exigir que você as escale com ajuda das mãos, do cajado ou da corrente lateral.

Gigante adormecido?
Lá se vão 300 anos desde a última erupção do Fuji, em 1707, e o intervalo começa a deixar alertas os vulcanólogos que o observam. A pausa normal entre as explosões é de 300 a 500 anos, mas esse não é o único motivo para que a atenção seja redobrada. Ao final de 2001, os tremores habituais do Fujisan pularam de um ou dois ao mês para mais de cem, indicando que uma movimentação maior poderia ocorrer.

No caso de uma erupção, os radares e sismógrafos que medem as variações em tempo real evitariam desastres como o do Monte Santa Helena, em 1980, nos Estados Unidos, mas os efeitos sobre a economia japonesa seriam devastadores. Nesse cenário hipotético, os cálculos são feitos na casa dos trilhões de ienes. Isso porque a fumaça tende a rumar a Tóquio, em cuja região metropolitana vivem 34,4 milhões de pessoas. A finíssima poeira das cinzas faria parar todo o tráfego, bloquearia computadores e deixaria os aeroportos incapazes de operar.

Fantasmas de lava incandescente à parte, é chegando ao sétimo nível que se avistam as primeiras cabanas. Mesmo para os que escolheram não passar a noite hospedados, essas construções rústicas são uma opção para descansar, tomar chá e se alimentar. E oferecem abrigo pela noite com refeições incluídas, tudo por cerca de ¥ 7.000. É numa delas, a Hinode-kan, que se encontra a única brasileira a trabalhar na montanha sagrada. Há treze anos, Isabel Noda passa os verões a quase três mil metros de altitude, preparando café-da-manhã para os aventureiros.

Letícia González/UOL
O amanhecer visto do topo do Monte Fuji, ou Goraiko, em japonês

Comida em gel e água turbinada
Para os que fogem dos preços inflacionados das encostas do Fuji, a hora de comer é também a hora de esvaziar a mochila. Ao organizá-la, vale a máxima do "menos é mais", e convém abusar das invenções nipônicas. Bebidas em gel ricas em vitaminas e açúcares garantem uma bela dose de energia, além de ocuparem um espaço mínimo - menor que a palma de uma mão. Feitas para executivos que perderam a hora do almoço, caem como uma luva para os alpinistas que precisam de calorias. E para se hidratar, em vez de água pura, os nativos apostam nas enriquecidas com minerais, como a da marca Aquarius. Elas previnem a desidratação e, por conterem sais, retém o líquido no corpo e diminuem as idas ao banheiro.

A partir do oitavo nível, tudo o que acompanha - e atormenta - o alpinista se concentra. O frio vai aumentando, o que é apenas uma prévia do que será no topo. Lá em cima, a diferença com a temperatura da base gira em torno de 20ºC. Esse detalhe exige precisão no cálculo do tempo para subir, pois ninguém quer chegar duas horas antes e esperar o amanhecer sob o vento gelado do céu japonês.

O caminho também fica mais íngreme e, nesse ponto, o cajado comprado por algo em torno de ¥ 1.000 nas lojas do quinto nível comprova que não é uma recordação boba de viagem. A ajuda dele é de bom tamanho para amenizar o cansaço e, ao final, esse pedaço de madeira se transformará no seu maior troféu. A cada estágio vencido, os atendentes das cabanas esperam os peregrinos com selos em brasa, a serem aplicados nos bastões. Colecionar os dez carimbos é tão essencial quanto enviar um cartão postal do cume. Mas por mais criativos que sejam os produtos japoneses para a vida prática, não há solução para a falta de ar que a altitude traz. Os tubos de oxigênio vendidos no ponto zero são ineficientes e oferecem, no máximo, um conforto psicológico. O ideal é parar quantas vezes forem necessárias, se abastecer de água e seguir em frente - ou saber a hora de marcar gravar o último carimbo.





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